O título deste relatório sobre o sul-americano realizado em Santiago, extraído da famosa película de Terrence Malick, foi o único que me ocorreu para dissertar sobre o campeonato.
O Chile foi abençoado por Deus e aperfeiçoado pelo seu povo: os Andes, o Deserto do Atacama, as vinícolas, Neruda, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, as ruas, as avenidas, os prédios, a cultura, enfim, a civilização a olho nu.
O cenário do campeonato era formado pelos belíssimos salões do Hotel Sheraton, com direito a água mineral, refrigerantes, cafés de múltiplos gostos e sabores, servidos por lindas moças.
O cocktail de inauguração, com poucos e felizes discursos, boa comida, boa bebida, embora tardias, mostrava o empenho dos organizadores em bem receber os jogadores vindos de todos os confins da terra, e celebrar o extraordinário número recorde de participantes em torneios sul-americanos.
A preocupação com os mínimos detalhes foi de tal ordem que a Organização parece ter esquecido o protagonista da festa: o jogo.
Não desejo aqui apontar responsáveis, mas o tumulto se instalou logo cedo e não se corrigiu até o final do torneio: bolsas trocadas, mal distribuídas, mal duplicadas, decisões extemporâneas, falta de cuidado, atenção. É certo que os organizadores fizeram de tudo para amenizar os transtornos e muitas vezes lograram êxito, mas nem sempre.
Para que se tenha uma idéia, até o Marcelo Caracci e o Roberto Garcia transitaram pelas mesas distribuindo bolsas.
Nada disso impediu que os gaúchos de Pelotas, Horacio Passos de Oliveira, Luis Eduardo Gurgel, Antonio Soares (Toninho) e Luiz Carlos Fetter, levantassem, com mérito, a taça de primeiro lugar do torneio paralelo, apesar de o Fetter, havia vinte anos, encontrar-se distante das mesas de bridge. Não foi só; as bravas paulistas, Lia Tajtelbaum, Cecília Malta, Vera Gama, Rosa Gorescu, Lucilia Pereira e Maria Teresa Falk, com irresistível ardor, sagraram-se vice-campeãs do torneio feminino, que contava com dezenove equipes, só perdendo para as chilenas nas últimas dezesseis bolsas da final. Sem surpresa, jogaram muito. Marilu Amaral também brilhou conquistando o segundo lugar no buttler, cujo sucesso, quem sabe, fará retornar à lide o seu marido. Miguelzinho e João Paulo ficaram em terceiro nas Duplas Livres, como também Jaqueline e Caru nas Duplas Femininas. Aliás, Jaqueline recebeu o seu certificado oficial de árbitro. Talvez imagine que os seus vencimentos serão reajustados. Em vão.
Os juvenis ganharam a medalha de bronze. Não é pouca coisa, ao contrário, trata-se do início de uma longa trajetória de sucesso. Parabéns a Thaís Battaglia, Stefano Tommasini, Alessandro Palmeira, Bruno Reinmann, Erick Ozaki e Henrique Barbosa Salomão (esse filho de Jeovani e futuro campeão mundial). Aliás, todos serão campeões. Não posso deixar de aqui mencionar o coach destes meninos, João Paulo, que vem suando a camisa com dedicação extremada para transformá-los em jogadores do primeiro escalão do Bridge. Registro também o patrocínio generoso do Ernesto para ver o triunfo dessa garotada.
Mas chegamos aqui ao esdrúxulo desfecho do torneio livre.
As últimas dezesseis bolsas, com vantagem de 44 imps para o time de Gabriel sobre a equipe sueca, transformaram-se, por feitiço, em vinte e duas. É isso mesmo, seis delas foram substituídas no decorrer do jogo em virtude de duplicações equivocadas. Marcelo conta que, por três vezes, presumiu que o match terminara e por três vezes foi obrigado a retornar para a mesa de jogo. A perplexidade também se espalhou pelos salões do hotel. O vugraph foi abandonado pela absoluta falta de compreensão do que se passava na tela. Barcellos comentava que as vozes do leilão eram incompatíveis com as cartas por mais estranho que pudesse ser o sistema. Tudo passava pelo terreno da especulação. As explicações eram omissas, quando não duvidosas, as respostas truncadas. Alguns jogadores saíram e entraram das salas fechadas. Por fim, todas as portas se abriram denotando o fim da partida. Teve início a apuração, até que se ouviu do Gabriel a frase desolada: ?perdemos por nove imps?.
Mesmo depois dos cumprimentos de praxe entre vencidos e vitoriosos, prosseguia na ante sala do jogo um burburinho de insatisfação. Na presença do árbitro, que prestava ambíguos esclarecimentos e insatisfatórias justificativas, mais explicações foram solicitadas e muitas mais rejeitadas.
Chegou um momento em que Ernesto se cansou e, ali mesmo, convocou uma reunião com o Presidente da Federação Chilena e o árbitro chefe numa sala contígua. Dez minutos depois pediu que fossem chamados os capitães das duas equipes. Não demorou mais do que alguns instantes para que de lá saísse um Gabriel sorridente exclamando: ?empate !?
As cortinas pareciam finalmente cerradas pondo fim ao tormentoso campeonato.
Que nada.
No imenso bar do Hotel, dirigiu-se o empertigado capitão sueco, Frank, ao Ernesto, protestando contra a decisão adotada. Afirmava que o jogador que se apresentara na reunião antes referida não possuía representatividade para decidir pela equipe, além do que considerava absurdo compartilhar uma vitória que só a ela pertencia. Ernesto ponderou que a decisão só fora adotada depois da aquiescência do representante sueco, que acreditava ser o capitão, para corrigir prejuízos flagrantes ocorridos na disputa.
Não adiantou. Os protestos não cessaram. Aproximou-se Gabriel, em seguida Diego, e depois Marcelo. Os argumentos eram óbvios: diziam os brasileiros, ? se não fosse pela confusão a nossa equipe certamente teria saído vitoriosa?, no que retrucavam os suecos ?ao contrário, apesar da confusão minha equipe foi vencedora e tanto é verdade que, ao final, vocês vieram nos cumprimentar reconhecendo a derrota?
A partir destas discussões entre os jogadores, Ernesto mais ouvia do que argumentava.
Bem sabia ele que pouco importava o que dali para frente acontecesse; eis que qualquer solução adicional, seja lá qual fosse, só faria piorar a anarquia instalada.
Muito se disse que Ernesto adotou uma decisão salomônica. Não é bem assim. Salomão se valeu de uma estratégia para apontar o vencedor de uma contenda, Ernesto, por sua vez, acolheu uma decisão que lhe pareceu adequada e conciliadora frente a todo aquele desalinho da disputa. É difícil o seu trabalho: deve ter olhos para a majestade da Confederação, para a justiça da competição, para os obséquios dos organizadores chilenos, para o êxito do Torneio, para a exaltação do Bridge. São muitas prioridades, mas é certo que dentre elas, no caso específico, a justiça da competição vem em primeiro lugar.
Mas também aí não é fácil eleger um lado quando ambas as verdades se assemelham.
Por isso, a sua decisão em benefício da harmonia, representada pelo empate, não está sujeita a qualquer censura.
Tal qual Ernesto, fui assaltado por muitas dúvidas. Entretanto, sou torcedor e, por isso, vejo a verdade que quero ver. Ora, Marcelo e Diego venceram o buttler de duplas, a equipe de Gabriel ganhou o round-robin, estava 44 pontos na frente dos suecos no início das derradeiras dezesseis bolsas, foi atropelada pela absoluta desorganização do torneio com a anulação de diversas bolsas favoráveis, como não considerá-la campeã?
Entretanto, não sou apenas torcedor. Mesmo sufocado por inúmeros defeitos, mesmo reconhecendo incontáveis falhas, sou obrigado a perseguir o caminho que me parece ser o reto.
Nas últimas dezesseis bolsas válidas jogadas, repito, válidas, (as bolsas anuladas, isto é, nulas de pleno direito, isto é, inexistentes, sequer podem ser consideradas para qualquer efeito), a equipe sueca sagrou-se vitoriosa pela diferença de nove pontos.
Assim, bem ou mal, com justiça ou sem ela, a meu juízo, o título de campeã sul-americana de 2014 lhe pertence.
Na festa de encerramento (ótima, por sinal), os suecos ainda pareciam inconformados, os brasileiros mostravam-se taciturnos e os organizadores preferiram o silêncio nos seus discursos.
Infelizmente, o silêncio não conseguiu asfixiar as imperfeições havidas na organização do torneio.
Não importa. O amor que o Chile devota ao Bridge e o trabalho desenvolvido pelos chilenos em seu benefício fazem desaparecer as mais espessas cinzas porventura percebidas no cenário paradisíaco deste magnífico país.
Assis (27/05/2014)
Caro Assis,
Ótimos seus comentários; apenas uma observação:
As últimas duas bolsas jogadas - que inverteram o resultado do match - foram irregulares e não deveriam ser consideradas. As leis do bridge são muito claras: "um match não pode continuar se qualquer jogador tiver conhecimento do status do match"; ora, dois jogadores sairam da sala e ficaram fora por cerca de 5 minutos, voltando depois para jogar essas duas bolsas. Portanto, tem-se de considerar que jogaram as duas últimas bolsas sabendo o status do match (mesmo que não o soubessem, o que me parece impossível). Assim sendo a afirmativa "a equipe sueca sagrou-se vitoriosa pela diferença de nove pontos." não é correta uma vez que dessas 16 bolsas computadas duas não poderiam ter sido consideradas.
Um abraço
Ernesto (28/05/2014)
Caros amigos,
Hoje, na sua crônica semanal, Nelson Motta lembra um antigo ditado mineiro: ?macaco que mexe muito quer chumbo?.
Acho que o tal macaco se parece vez por outra comigo. Penso que atropelei a verdade quando tirei conclusões precipitadas sobre a decisão do sul-americano sem me inteirar de toda a sua
complexidade técnica. Felizmente, Ernesto me ensinou o dever de casa e apontou o grave e injusto equívoco por mim cometido. Peço, por isso, desculpas à equipe do Gabriel. Entretanto, como
sei que nuvens pairavam sobre a decisão adotada em Santiago, haja vista o silêncio que pairava sobre o assunto, tendo em mira a absoluta falta de explicações, acredito que todo esse rebuliço
que criei deve, ao menos, ter servido para dar maior credibilidade e consolidar o resultado vitorioso da equipe do Gabriel.
Ouso até mesmo presumir que ela é hoje mais campeã do que ontem, porque, efetivamente, alcança, agora, o reconhecimento do título, sem sombras, do mundo do Bridge.
Peço, também, desculpas aos associados da Federação.
Obrigado. Assis. (30/05/2014)
Sr Presidente,
A equipe Chagas repudia suas conclusões quanto ao resultado do Campeonato Sul Americano
2014. O Ernesto de forma concisa e precisa já esclareceu o que houve.
Sua afirmação de que a Suécia ganhou o campeonato, com ares de justiceiro, insinua que a
Confederação Sul Americana acomodou o resultado, e desmoraliza tanto jogadores como
dirigentes.
Portanto, Sr Presidente, atribuindo à precipitação uma afirmação tão categórica, creio que
cabe um esclarecimento, com o mesmo entusiasmo da versão anterior, por parte da Federação Brasileira de Bridge.
Para corrigir omissões, cabe ressaltar que no recém encerrado Sul Americano duas equipes
brasileiras, a equipe D'Orsi e a equipe Chagas - esta completada com o excelente jogador argentino Ernesto Muzzio - obtiveram resultados expressivos classificando-se entre as quatro primeiras colocadas em um torneio que contava com equipes sul-americanas, europeias e americanas de altíssimo nível.
Da América do Sul apenas essas duas equipes superaram a fase classificatória. Ambas, portanto, merecem o apoio e o reconhecimento da Federação Brasileira de Bridge.
Como registro menciono, nominalmente, os jogadores das duas equipes e que merecem nosso respeito e aplauso.
Equipe D'Orsi: Ernesto, Mauricio, Junqueira, Renato, Miguel e João Paulo
Equipe Chagas: Gabriel, Muzzio, Diego e Marcelo
Também merecem pleno reconhecimento, principalmente considerando a qualidade dos oponentes, as duplas Marcelo-Diego e Miguel-João-Paulo, respectivamente primeiro e segundo colocadas no Butler
Finalmente, expresso meu desejo e esperança de que o bridge brasileiro, organização e
jogadores, volte a se unir e a alcançar mais resultados expressivos.
Marcelo C Branco pela equipe Chagas (31/05/2014)